Na semana passada, a relação com o trabalho foi uma das pautas da terapia. A psicóloga, depois de ver o que falei sobre o que percebia a respeito do mercado e das formas de lidar com isso por meio da visão dos meus familiares, me perguntou o que eu realmente pensava sobre esse assunto.
Qual é a minha visão sem a interferência das opiniões alheias? O que eu penso sobre trabalho e como vejo esse segmento da minha vida em relação ao que quero construir pra mim? Como posso unir essa fatia do meu caminho a desejos e necessidades que sinto?
Fiquei matutando nessas perguntas. Com tantos debates relacionados ao ato de trabalhar, às vezes, é difícil elaborar um pensamento sem outras intervenções. Síndrome de burnout, quiet quitting, workaholic, home office por exemplo, são só alguns dos termos envolvidos em diversas discussões nesses últimos meses, e é capaz de já ter aparecido mais algum no linkedin enquanto escrevo esse texto.
Apesar de perceber que muita coisa tem mudado, visto que algumas pessoas não pensam mais em voltar ao trabalho 100% presencial e muitos profissionais estão tentando diminuir a carga horária de trabalho no dia a dia, ainda há diversas ideias que são semelhantes aos pensamentos dos nossos pais quando ingressaram em suas profissões.
Uma das primeiras coisas que boa parte das pessoas perguntam ao iniciar uma conversa é “o que você faz?”, como se o ofício de cada um se tornasse a principal parte da identidade pessoal. Algumas pessoas não conseguem lidar com a aposentadoria e continuam trabalhando, porque não conhecem outra forma de existir, como se parar de trabalhar fosse uma quase morte.
O que você pode falar sobre si sem citar nada sobre o que estuda ou trabalha? E o que você consegue encontrar de valor no seu trabalho sem ser status, validação familiar, dinheiro ou reconhecimento de outros?
Lembro que, quando fiz ENEM, o tema da redação foi sobre "o trabalho na construção da dignidade humana", e isso envolve tantas coisas que vão para além do ato de exercer uma profissão, não é? Sem falar na falta do cumprimento de direitos básicos para trabalhadores em diversas situações e no aumento do desemprego nos últimos anos. Muito já foi conquistado devido à luta trabalhista, mas ainda há diversos fatores em constante construção no Brasil.
Apesar de tudo isso, ter um ofício é uma forma de conquistar algumas possibilidades para criar condições de aprender outras coisas, melhorar o âmbito financeiro, se desenvolver profissional e pessoalmente, trocar ideias com pessoas, contribuir por meio de suas habilidades e seus conhecimentos, se reconhecer como alguém que pode cooperar para algo, enfim. Isso é o que normalmente é falado, mas o que você sente em relação ao seu trabalho?
Algumas pessoas não conseguem entender o porquê de alguém do interior não trabalhar em uma capital para ganhar mais dinheiro e teoricamente viver melhor, mas não pensam que esse alguém pode preferir armar uma rede às 3h da tarde, fazer uma caminhada depois e voltar ao trabalho apenas na manhã do dia seguinte, ganhando o que precisa para manter sua saúde e seus hábitos diários sem outras preocupações (algumas pessoas chamam isso de costume, outras, de acomodação, e outras, de qualidade de vida).
Muitas vezes, relacionamos o trabalho à carga horária exercida ou ao salário recebido no fim ou começo de cada mês. Porém, o que resta quando não falamos dos dias gastos e das entradas financeiras na conta bancária?
Não pretendo trazer alguma resposta para nenhuma dessas questões, até porque continuo tentando elaborar o que penso sobre o trabalho, com o intuito de ver outras coisas que não envolvam o financeiro e o tempo — apesar de elas fazerem parte de qualquer modo — para ampliar minha visão sobre o que faço para além das necessidades, consequências e dos objetivos do ofício.
Que outras luzes podem ser acesas para ajudar a gente a chegar mais perto do que acreditamos e enxergar o que nos leva para além do que fazemos?
O que é preciso?
É preciso fazer um requerimento
e ao requerimento anexar um currículo.O currículo tem que ser curto
mesmo que a vida seja longa.Obrigatória a concisão e seleção dos fatos.
Trocam-se as paisagens pelos endereços
e a memória vacilante pelas datas imóveis.De todos os amores basta o casamento,
e dos filhos só os nascidos.Melhor quem te conhece do que o teu conhecido.
Viagens só se for para fora.
Associações a quê, mas sem por quê.
Distinções sem a razão.Escreva como se nunca falasse consigo
e se mantivesse à distância.Passe ao largo de cães, gatos e pássaros,
de trastes empoeirados, amigos e sonhos.Antes o preço que o valor
e o título que o conteúdo.
Antes o número do sapato que aonde vai,
esse por quem você se passa.Acrescente uma foto com a orelha de fora.
O que conta é o seu formato, não o que se ouve.
O que se ouve?
O matraquear das máquinas picotando o papel.Escrevendo um currículo, de Wislawa Szymborska
o que tenho visto por aqui
📚 Na última semana, foquei minha atenção em leituras para me ajudar na escrita da dissertação de mestrado, e um dos livros que concluí e amei foi Limiar, aura e rememoração, da filósofa e escritora Jeanne Marie Gagnebin. A obra dialoga bastante com o seu outro livro, Lembrar escrever esquecer, abordando os temas de escrita, morte e memória, e elaborando reflexões com os pensamentos de Walter Benjamin. Vale muito a pena conhecer!
Prenhe de um futuro desconhecido, a infância também é atravessada por uma temporalidade da espera e da paciência, que tem no limiar seu espaço privilegiado. A infância ainda sabe fruir de um tempo sem determinação, de um tempo que não possui um fim prefixado, um tempo de espera de um desconhecido que não pode ser antecipado por uma decisão precipitada, mesmo quando os adultos tentam encaixar a criança numa estratégia de previsibilidade da vida. Assim, o presente é pleno da intensidade da descoberta e, simultaneamente, pleno de angústia e de esperança com relação ao futuro, como se o tempo da espera (Warten) redobrasse, por sua necessária paciência, o fervor do vivido, que não voltará mais com essa abertura.
📺 Estou assistindo Tuca & Bertie (tem a 2ª e 3ª temporada na HBO) e amando. A série de animação, criada por Lisa Hanawalt, é uma comédia que mistura drama e diversos outros pontos que fazem parte da vida adulta: insegurança, trabalho, amizade, autoestima, terapia, relação amorosa, mudanças internas e externas, entre outros. Eu tinha visto a 1ª temporada na Netflix e fiquei muito feliz quando descobri que foi renovada. Você já assistiu? Conta pra mim!
outras ondas
Mais alguns microcontos que escrevi no clube de escrita da Mell Renault
uma conchinha na beira do mar
Documentário Faixas: o ofício dos pintores letristas (2020), de João Vítor Cardoso com Paulo Moreira.
Espero ter levado você a refletir um pouco sobre sua relação com o trabalho e te inspirado a pensar em outras possibilidades de alguma forma.
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Um beijo e até semana que vem ✨
Adoro conversar sobre esse tema. Inclusive acho fundamental, já que vivemos em uma era na qual SOMOS o nosso trabalho. Eu cresci bem no interior e não entendia a importância da forma como se flui o tempo por lá, hoje valorizo muito tudo que aprendi e tento colocar em prática. Precisamos de dinheiro neste sistema, mas também precisamos estar vivos e o trabalho pode ser um caminho que soma ou, na maioria das vezes, o que nos consome...