oi, tudo bem? Sou Priscilla e estou muito feliz por ter escrito a 10ª edição da Mensagem na Garrafa, que você vai ler agora :’) Agradeço por me acompanhar aqui! Na cartinha de hoje, trouxe um poema que escrevi sobre rastros de memória e vou falar um pouquinho sobre o filme Aquarius, além de outras dicas. Boa leitura! ❤️🔥
Rastros
a memória involuntária em frente aos olhos
os ritos de passagem todos voando
a temporalidade transeunte em fluxo
e contra fluxo desde a infância
até a velhice, as asas abertas
buscam o desconhecido
Aquarius (2016), dirigido por Kleber Mendonça Filho, está em constante diálogo com o “velho” e o “novo”, entre o que está em pleno funcionamento e o que corre risco de ser esquecido ou apagado, por meio de objetos do cotidiano, flashbacks, músicas e especialmente por meio do imóvel em que Clara mora, o qual se encontra em um período de incertezas e mudanças entre o que já foi e o que pode vir a ser.
Em Aquarius, o condomínio de Clara se torna quase um protagonista à parte, recebendo o mesmo nome que o filme, pois a câmera sempre se dirige a ele em vários planos, e a vida da personagem também entra em um estado de constante retorno ao lugar onde ela viveu com a família, onde continua morando e não deseja abrir mão de sua moradia, que representa mais do que só um lugar para morar, sendo principalmente um espaço de memória, abrigando o seu corpo e a sua história.
Após alguns planos-detalhe nos quais são mostrados objetos, como vinis, cds e vídeos cassete, há uma cena de entrevista em que a jornalista questiona se Clara só ouve músicas no “estilo antigo”, enquanto já há tantas outras ferramentas tecnológicas que fazem parte da rotina das pessoas. Então, Clara tenta explicar à jornalista mais sobre a sua relação com o tempo e o porquê de colecionar discos antigos, mesmo já havendo dispositivos de áudio mais modernos, devido à memória e história própria que eles guardam:
Eu gosto de tudo, tá certo? De MP3, streaming, tendo música pra mim tá bom, tá importante, e essa nova tecnologia em geral, mas… Posso te contar uma história? (…) Esse disco eu comprei em Porto Alegre, num sebo (…) Aí tô aqui num dia calminho, domingo, abri o disco pra ver, e olha o que encontrei dentro. Esse artigo do Los Angeles Times. Esse artigo é de novembro de 1980. Esse disco, o Double Fantasy, foi lançado em dezembro de 1980. Ou seja, o artigo foi publicado semanas antes do John Lennon ser assassinado: no dia 8 de dezembro de 1980 (…) Esse artigo aqui que foi publicado dias antes do John Lennon ser assassinado e de você ter nascido diz o seguinte: “os planos de John Lennon para o futuro”. Este disco que estou segurando passa a ser um objeto especial (Aquarius, 2016).
Logo após a apresentação do título do filme, a narrativa é iniciada com uma apresentação de fotografias em preto e branco, remetendo a uma Recife mais antiga, cidade onde Clara vive, para apresentar os contrastes e as mudanças do tempo.
Enquanto as primeiras fotos mostram planos mais próximos das pessoas, semelhantes aquelas que podemos encontrar em álbuns de família, com poucos prédios na orla marítima, as fotos seguintes já são enquadradas em um plano geral, como imagens aéreas que podemos ver em catálogos de construtoras, que privilegiam a crescente urbanização das cidades. Durante esse trajeto apresentado pelas fotos, podemos compreender a ideia de uma narrativa que aborda a questão da memória e que se passa do micro para o macro. Essas imagens são adocicadas nostalgicamente pela trilha de Taiguara, cantando “Hoje”.
Ao longo do filme, Clara se encontra em um labirinto de emoções e memórias ao ver que o lugar onde lutou para viver está ameaçado, por empresários de um escritório de engenharia, a se transformar em um arranha-céu de luxo.
Além de falar sobre o processo de envelhecimento natural do ser humano, fato que parece não ser compreendido pelos mais jovens — o que faz com que ela fique reafirmando que está viva para si e para os outros de várias formas — o filme aborda os esquecimentos que ocorrem na rotina e a necessidade de se apegar aos vestígios, às raízes e às pequenas coisas que contam a história de suas experiências, do seu passado e de quem se tornou.
Enquanto algumas pessoas acham que é normal comprar vários imóveis com dinheiro vivo, a protagonista de Aquarius sabe que o lugar onde mora é muito mais do que o concreto que protege seu corpo e, assim, respeita tudo o que ela construiu e experienciou ao longo de sua história, não aceitando trocar todo esse valor que vai além do material por um preço em dinheiro.
Em um momento de diálogo entre mãe e filhos, a filha mostra a sua preocupação de que a mãe continue vivendo em um prédio abandonado, correndo risco de vida, e afirma que os três estão preocupados com a mãe, que está sozinha em um prédio fantasma, indicando que ela deveria vender logo o apartamento para se livrar de um problema. Clara, com uma expressão estarrecida, tenta explicar que não se trata de um prédio fantasma, visto que ela vive ali, que é lá onde seus filhos cresceram, e é principalmente por meio dele que a sua história pode ser relembrada.
Longe de ser uma espécie de saudosismo, aversão ao novo ou conservadorismo, a narrativa nos leva para um lugar de entender a importância de preservar nossas memórias afetivas e resistir ao que nos é imposto, levando em consideração o que é mais importante. Um prédio, um bairro ou uma cidade não remetem apenas a estruturas e materiais físicos, mas à passagem e vivência de gerações, famílias e vidas que devem ser rememoradas em meio a tantas mudanças constantes.
o que tenho visto por aqui
🎬 Assisti ao filme O livro dos prazeres, uma adaptação do filme de Clarice Lispector, dirigido por Marcela Lordy no cinema. O livro é um dos mais lindos que já li e, apesar de ter visto muitas pessoas falando que o filme trouxe algumas diferenças e poderia ter se aproximado mais da obra literária, gostei muito do que foi abordado no filme e do fato de ele se sustentar sozinho.
Fazer uma adaptação de um texto tão subjetivo é realmente desafiador e não há a possibilidade de ser literal, mas a diretora conseguiu colocar a essência do texto nas imagens, nos pequenos detalhes e silêncios, e a cena do mergulho é forte, espontânea e emocionante. A atriz Simone Spoladore está brilhante no papel, e também captou e transmitiu bastante a narrativa da protagonista Lóri. Vale a pena demais conferir!
💻 Fiz um post cheio de afeto no meu blog Memórias de vento para falar sobre como podemos nos conectar com a nossa criança interior. Vem ler!
outras ondas
Um papo incrível sobre arte Rita Zerbinatti com Monique Malcher
Site para treinar o seu inglês com músicas que você gosta (dica maravilhosa da Heloiza)
uma conchinha na beira do mar
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Obrigada pela companhia e leitura!
Até a próxima! Um beijo 💖
Eu amo esse filme Aquarius, fala de tantas coisas que muitas vezes nos passam despercebidas. Que edição linda Pri!